quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Eyre

"A claridade do dia começava a deixar o quarto vermelho; passava das
quatro, e a tarde nublada descambava para o sombrio crepúsculo. Eu ouvia a
chuva ainda açoitando continuamente a janela da escada, e o vento uivando
na alameda atrás da sala; fui ficando fria como uma pedra, e aí minha
coragem afundou. O habitual estado de humilhação, insegurança e depressão
em que eu vivia se abateu, frio, sobre as brasas de meu ardor em declínio.
Todos diziam que eu era má, e talvez fosse mesmo, que idéia tivera eu, se
não a de me imaginar deixando-me morrer de fome? Isso certamente era um
crime e estava eu preparada para morrer? Ou seria a cripta sob o coro da
Igreja de Gateshead um destino convidativo? Naquela cripta, tinham-me
dito, jazia enterrado o Sr. Reed; e levada por esse pensamento a lembrá-lo,
demorei-me nisso com crescente temor.
(...)
Ocorreu-me então uma idéia singular. Não duvidava — nunca duvidei —
de que, se o Sr. Reed estivesse vivo, me trataria com bondade; e agora,
sentada ali olhando a cama branca e as paredes ensombrecidas — e
ocasionalmente, também, volvendo um olhar fascinado para o espelho de
brilho baço — comecei a lembrar-me de que tinha ouvido falar que os
mortos, perturbados em suas tumbas pela violação de seus últimos desejos,
revisitavam a terra para punir os perjuros e vingar os oprimidos; e pensei que
o espírito do Sr. Reed, atormentado pelos maus tratos à filha da irmã, podia
abandonar sua morada — na cripta da igreja ou no mundo desconhecido dos
que se foram — e erguer-se à minha frente ali no quarto. Enxuguei as
lágrimas e abafei os soluços, temendo que algum sinal de dor violenta
despertasse alguma voz sobrenatural para consolar-me, ou evocasse algum
rosto aureolado, curvando-me sobre mim com estranha piedade. Senti que
essa idéia, consoladora em teoria, seria terrível se realizada; esforcei-me por
sufocá-la com toda a minha força — esforcei-me por ser firme. Afastando os
cabelos dos olhos, ergui a cabeça e tentei olhar corajosamente em volta do
quarto escuro; nesse momento, uma luz fulgiu na parede. Perguntei-me se
seria um raio de lua que penetrava por alguma abertura na veneziana. Não; o
luar era parado, e aquilo se movia; vi a luz subir deslizando para o teto e
tremular acima de mim. Posso conjeturar agora que aquele raio era, com
toda probabilidade, a luz de uma lanterna levada por alguém que atravessava
o gramado; mas naquele momento, preparada como estava a minha mente
para o horror, abalados como estavam meus nervos pela agitação, pensei que
o rápido raio era o anúncio de alguma visão próxima do outro mundo. Meu
coração disparou, minha cabeça ficou quente; encheu-me os ouvidos um som
que julguei ser o bater de asas; parecia haver alguma coisa perto de mim;
sentia-me oprimida, sufocada; a resistência cedeu; corri para a porta e sacudi
a maçaneta, num esforço desesperado. Ouvi passos que se aproximavam
correndo pelo corredor externo; a chave girou, e Bessie e Abbot entraram.
— Srta. Eyre, está doente?
— Que barulho terrível! Me penetrou até as entranhas! — exclamou a
Srta. Abbot.
— Deixem-me sair! Deixem-me ir para o quarto das crianças! — foi o
meu grito.
— Para quê? Está machucada? Viu alguma coisa? — perguntou de novo
Bessie.
— Oh! Eu vi uma luz, e pensei que vinha um fantasma. — Apoderarame
da mão de Bessie, e ela não a retirou.
— Ela gritou de propósito — declarou Abbot, com certa repugnância. —
E que grito! Se estivesse com alguma dor forte, seria desculpável, mas era só
para nos trazer aqui; conheço os truques baixos dela.
— Que confusão é essa? — perguntou outra voz, peremptória; e a Sra.
Reed veio pelo corredor, a touca ampla esvoaçando, o vestido farfalhando
ruidosamente. — Abbot e Bessie, creio que dei ordens para que Jane Eyre
fosse deixada no quarto vermelho até que eu própria viesse vê-la.
— A Srta. Jane gritou tão alto, madame — suplicou Bessie.
— Solte-a — foi a única resposta. — Solte as mãos de Bessie, filha; não
conseguirá sair por esses meios, pode estar certa disso. Detesto artifícios,
particularmente em crianças; é meu dever mostrar-lhe que os truques não
funcionam; agora você ficará aqui uma hora mais, e só a libertarei sob a
condição de total submissão e silêncio.
— Oh, tia! Tenha piedade! Perdoe-me! Eu não agüento... que eu seja
castigada de outra forma! Morrerei se...
— Silêncio! Essa violência é quase repulsiva. — E era, sem dúvida, o
que ela sentia. A seus olhos, eu era uma atriz precoce; sinceramente,
encarava-me como um misto de paixões violentas, espírito mesquinho e
perigosa duplicidade.
Tendo-se Bessie e Abbot retirado, a Sra. Reed, impaciente com a minha
agora frenética angústia e meus desenfreados soluços, empurrou-me
abruptamente para trás e me trancou, sem maiores delongas. Ouvi-a afastarse;
e pouco depois de ela se ir, suponho que tive uma espécie de ataque, a
inconsciência encerrou a cena."

A autora é Charlotte Brontë, irmã de Emily, e o romance é Jane Eyre, de 1847...aiai

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